O amigo dos gatos
Orlando Almeida / Global Images
Aos Esses
Um dia, o Manuel António Pina disse-me: Se tivermos um gato deitado no tapete não temos uma história; mas se tivermos um gato deitado no tapete do cão, sim, temos uma história. O que varia é a tensão, e os livros dão-se bem com ela, é precisamente isso que lhes insufla vida. Os gatos brincam com as suas presas, vêm aos esses quando os chamamos, enfim, rodeiam as coisas antes de as sentenciarem, não correm para o destino, fazem durar a viagem, como num jogo. Isso é o miolo de qualquer história. Se temos uma personagem que tem um desejo e simplesmente o concretiza, não temos nada. Para contarmos uma história, temos de dar as voltas necessárias até chegarmos ao destino, não podemos chegar lá directamente, sem tensão, dificuldades, gozo, embelezamentos, obstáculos. Temos de escrever como os gatos caminham quando os chamamos.
Não sei se os gatos gostam de escritores, mas são duas espécies claramente aparentadas: por trabalharem sós, pela contemplação e observação. Quando um escritor levanta a cabeça do teclado para meditar sobre uma personagem, quando pára para tentar encontrar a palavra justa, quando olha pela janela para tentar desfazer um nó do enredo, tem um comportamento felino. Um gato poderá encontrar, nesse tipo de gestos, uma espécie de identificação. Sim, dirá o gato, também olho para o infinito, semicerro os olhos, páro, demoro-me numa quietude melancólica. É até estranho, dirá o gato, que este homem sentado na secretária não ronrone.
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