O amigo dos gatos
Fotografia: Site Pessoal - josejorgeletria.net em 2016
Caros amigos dos gatos,
Só posso dar razão a Charles Baudelaire quando defendia que ninguém deve considerar-se dono de um gato, já que são os gatos que verdadeiramente fazem de nós coisa sua, território dominado e objecto de posse a que não sabem renunciar.
Já tive 12 gatos e agora tenho seis, em coabitação pacífica com três cadelas e um cão, formando juntos uma comunidade de regras secretas e insondáveis.
Sempre deixei os gatos ocuparem o espaço físico da minha escrita, passando por cima do teclado do computador ou saltitando por cima do papel onde as palavras ganham forma e sentido. Alguns foram envelhecendo e partiram. Depois outros vieram e, com eles, distintas relações com a escrita e com a mão que escreve. Não é coisa fácil de explicar. Hemingway, como se sabe, só por eles podia ser interrompido e “invadido”. Nem pessoas nem cães poderiam ter semelhante atrevimento. Estive na sua “Finca Vigia” perto de Havana, e senti essa magia e esse mistério ainda pairavam no ar. Para os cães houve sepulturas, para os gatos não, pois até no acto de morrer os quis tão livres como havia sido em vida.
Sempre gostei da poesia de Manuel António Pina, meu camarada de jornalismo, e, quando nos encontrávamos, la vinham os gatos à baila, pois pertencíamos à tribo dos escritores com gatos, daqueles de que os jornalistas se lembram sempre quando é tempo de revelar os pequenos segredos ( original:secredos) da oficina de quem escreve, pinta ou filma. Acho que o Pina teve sempre mais gatos do que eu, mas nunca fizemos essa falível contabilidade. O que sei é que recebi a visita de várias jornalistas a (original: e) prepararem reportagens sobre escritores com gatos e, invariavelmente, já tinham estado com o Manuel António Pina, ou iam estar a seguir.
Os gatos devem-lhe alguns dos mais belos e profundos poemas que sobre eles foram escritos, porque Pina era um grande poeta e amava verdadeiramente os gatos, a sua soberania e o seu amor à liberdade.
Ao fim de todos estes anos, ainda não percebi se são os gatos que gostam dos escritores ou os escritores que gostam dos gatos. Acho que as duas afirmações são absolutamente verdadeiras. E também acho que os gatos sabem muito mais a respeito de quem escreve do que nós sabemos acerca deles, até porque já por aqui andam há muito tempo mais tempo.
Às vezes, olho para a minha querida “Betty”, com o garbo e a elegância dos seus 18 anos em tons de ouro, e dou-me conta do muito que ainda me falta aprender sobre a essência da vida. Ela sabe, mas não diz.
E há outra coisa que eu sei: nestes dias, há muitos gatos enroscados de tristeza que, à sua maneira, choram a perda do António Manuel Pina, sem lamúria nem conversa fiada, somente com o sentimento felino e intenso de que um deles acabou de partir. Para sempre.
Lisboa, 25 de Outubro de 2012
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